A Índia Negra e os Paralelos de União Entre os Cultos Brasileiros

Indianos do grupo Siddi
Indianos do grupo Siddi (Fonte: http://www.kamat.com/kalranga/people/)
Por Me. Obashanan

Umbanda e Candomblé em algum ponto de sua história religiosa se unem, ou pelo menos se encontram ou derivam um do outro, quer seja a Umbanda descendente dos Candomblés Bakongo/Ngola, quer seja o próprio Candomblé Yorubá Urbano, que ressurgiu nas grandes metrópoles a partir do contingente Umbandista em cidades como São Paulo e Curitiba.

Seria tão somente coincidência que palavras como Orixá, Exu, Ogum, Oxossi, rum, lê, Roncó, peji, Zamby, Egun e tantas outras existam tanto em uma tradição quanto em outra? Assim como palavras indígenas ─ e este é mais um caso a ser discutido ─ entraram para o mundo social dos terreiros indistintamente, assim também fundamentos africanos foram se espalhando por todos os cultos brasileiros de forma mais ou menos uniforme.

Sabemos que por dentro da Umbanda os nomes se ligam aos fonemas originais da fala cósmica, embora, claro, tudo possa ser discutido à luz das provas factuais tão queridas pela academia. Isso por um lado, pelo lado umbandista, de alguns setores esotéricos. Por outro, pelo lado das Nações Africanas, por mais que se abalize o fim do sincretismo nas novíssimas gerações dos candomblés brasileiros, há que se tomar o cuidado de se repensar cautelosamente 500 anos de história e os porquês dela assim ter acontecido. Mas tal assunto é oportuno para uma outra discussão, em outro texto, pois acreditamos que o ideal para a perfeita relação entre os cultos seja, inicialmente, o encontro das semelhanças rituais, cânticos, danças etc, de tudo aquilo que é compartilhado naturalmente, já que, de uma forma ou de outra, todos pertencem, nas origens, a uma mesma linhagem e família espiritual.

E mesmo que se pense em termos históricos e/ou tempos míticos, onde algumas correntes entendem que a Umbanda é mais nova que os Cultos de Nação e outras acreditam que ela é origem de todas as religiões do mundo, ainda assim, em ambos os conceitos há convergência, há conexão entre saberes muito antigos usados por todos. Partem de uma mesma fonte, ou são rios que se encontram num mesmo mar que só os apegados ao não-diálogo, à diversidade voltada ao ódio e à disputa não conseguem ver. Chegará um dia em que, finalmente, poderemos discutir com felicidade sobre fundamentos católicos, esotéricos, kardecistas, africanos, indígenas e tantos outros que fazem a Umbanda ser tão rica e tão maravilhosamente necessária ao colorido das opiniões diversas mas nunca contrárias em si e nem contraditórias em sua fenomênica e doutrina? Quem sabe?

Mas vamos ao que interessa: até prova em contrário que seja admitida pela ciência (pois ela mesma assim afirma, embora hajam ainda provas incontestes que podem revolucionar este conceito ─ o da origem humana em solo sul-americano), por volta de 50 mil anos atrás, povos negros deixaram o continente africano, adentrando a Europa, Ásia, e o continente americano modificando seu fenótipo em função dos diferentes ambientes que encontravam. Assim, a pele tornou-se branca pela ausência de Sol, os olhos tornaram-se oblíquos pela adaptação a locais de muito vento, etc. No século V a.C, Heródoto afirmava existirem duas “nações etíopes”, uma na África, outra em Sind, região cor­res­pon­den­te aos ­atuais territórios da Índia e do Paquistão.

Marco Pólo escreveu que os indianos reapresentavam ­suas divindades como negras e os demônios como brancos, afir­man­do que ­seus deuses e santos ­eram pretos. Mais, ainda, em O Livro das Maravilhas, atribuído ao viajante (Porto Alegre, L&PM, 2006, pág.236), lê-se que os habitantes do “reino de Coilum”, atual cidade de Quilon, na província de Querala, eram “todos de raça negra”.

Esses povos indianos teriam sido le­va­dos como escravos da África, inicialmente por mer­ca­do­res árabes e depois pelos portugueses em suas naus, per­fa­zen­do uma rota litorânea situada hoje nos ­atuais Iêmen, Omã, Irã e Paquistão. Cativos e importantes em muitas tarefas, se destacaram como soldados nos exércitos dos chefes muçulmanos, à partir do sé­cu­lo ­XIII. Por volta de 1459, o rei muçulmano de Bengala possuía um exército de 8 mil escravos africanos. Em 1500, foram conquistados pelos portugueses os territórios indianos de Goa, Damão e Diu, o que transformou dras­ti­ca­men­te a escravidão na Índia: o desempenho de ­seus escravos foi relativizado a ta­re­fas me­no­res em ­seus negócios, casas e fazendas e as mulheres negras passaram a ser ­mais utilizadas como concubinas ou prostitutas.

Sob o domínio inglês, a maio­ria foi re­pa­tria­da pa­ra a Áfri­ca e ­seus des­cen­den­tes fo­ram dei­xa­dos em bol­sões ao lon­go da cos­ta oci­den­tal, principalmente nas re­giões cen­tral e sul (esta tese nos faz pensar: a palavra Umbanda pode tanto ser de origem Bantu como pode ter vindo, realmente, dos povos indianos que retornaram à África). Hoje o país com maior população negróide é a Índia. Hoje, além dos po­vos ­afro-in­dia­nos que lá che­ga­ram ­mais re­cen­te­men­te, os drá­vi­das cons­ti­tuem uma das pro­vas incontestes des­sa pre­sen­ça, pois estão no continente há milhares de anos, antes mesmo da invasão ariana. Localizados no Sul do país, e con­tan­do por volta de 100 mi­lhões de in­di­ví­duos, os povos Dravidianos têm pe­le bem es­cu­ra e fei­ções africanas, ­além de cos­tu­mes, lín­gua e he­ran­ça cul­tu­ral que evi­den­ciam la­ços com as ci­vi­li­za­ções egíp­cia, cu­xi­ta e etío­pe (segundo nos diz Nei Lopes em Kitábu: o Livro do Saber e do Espírito Negro-Africanos – Editora: Senac Rio, 2005) .

Construtores de alguns dos mais antigos e misteriosos com­ple­xos ur­ba­nos da história humana, tais co­mo os de Harappa e Mohenjo-Daro, ­mais tar­de fo­ram re­du­zi­dos também à con­di­ção de es­cra­vos e co­lo­ca­dos no ­mais bai­xo pa­ta­mar do sis­te­ma de cas­tas ins­ti­tuí­do pe­los aria­nos. Até 1951, o rei (Nizam) de Haiderabad man­te­ve uma guar­da de­no­mi­na­da “ca­va­la­ria afri­ca­na”. E es­sa re­gião (a zo­na de Siddi Risala de onde provém as fotos que abrem nosso artigo. Veja em http://www.kamat.com/kalranga/people/) con­ser­va, na cultura musical, na dança e no uso de pa­la­vras da lín­gua suaí­le, for­tes tra­ços cul­tu­rais afri­ca­nos. Pes­qui­sas re­cen­tes des­co­bri­ram a exis­tên­cia de co­mu­ni­da­des ­afro-in­dia­nas em Karna­kata, Gujarat e Anhara Pradesh, onde ­seus mem­bros se au­to­de­no­mi­nam “afri­­ca­nos” (con­for­me The African Dias­po­ra in India, 1989).

Mas muitos podem perguntar: o que este texto tem a ver com a introdução? Aqui talvez esteja o paralelo existente entre as “Umbandas Africanistas” e as Nações Africanas dos Candomblés brasileiros, com seus mistérios milenares de 10.000 anos atrás e a “Umbanda Esotérica” de muitos fundamentos indianos, remontando a datas bem anteriores, de períodos míticos e pré-históricos. As origens são as mesmas e as conexões evidentes. Por isso o atabaque, Ifá e Orixá, chacra e reencarnação pertencem tanto a uma corrente quanto à outra em suas questões metafísicas mais profundas. Basta saber olhar.

P.S. – Já ia esquecendo: é claro que não veremos nenhum negro indiano na novela da globo, assim como muitos não querem que a África exista dentro da Umbanda e que a Umbanda tenha raízes com a Índia.

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