Os mistérios do Rum, o Tambor dos Reis Divinos

Sacerdote com as mãos sobre um tambor Rum enfeitado com tiras de pano vermelha e branca, agogô e um agbê.
Fonte: Acervo Estrela Verdade

Por Me. Obashanan

1) A importância do pulso

Na música africana e na sua descendência nas Américas, o tambor de som grave, mais conhecido no Brasil genericamente como tambor Rum (esta é uma denominação da língua Fon. Rum significa rugido. É um nome mais conhecido nas tradições aparentadas com as descendências sudanesas. Dependendo do grupo de tambores, segundo seu tipo, procedência e função, os tambores graves terão outros nomes nas Américas, tais como YiáAngombaRufadorYan, etc, mas sempre com funções semelhantes. É o tambor que conta as histórias das divindades, através da marcação dos passos do dançarino, acompanha as notas da melodia dos cânticos e é também o instrumento que possui o chamado “código de invocação”, um código muito antigo, onde apenas fragmentos de sua estrutura são possíveis de se ouvir hoje na música ritual.

O grave é o chão, é onde está firmada a comunhão da música com a Terra, ou com aquilo que é firme e difícil de se modificar, de se mover. Por esse mesmo motivo, os sons graves pertencem à memória e à tradição. Aos graves pertencem os séculos e sua inscrição na eternidade é feita através de ritmos complexos estruturados com o passar das eras. Os tambores graves contam histórias esquecidas. Por esse motivo a mesma divindade, Ayan para os Nigerianos, Mooyo para os Bantu e Ayòón e Akom para os Jeje é, além da divindade da música, a divindade das eras, assim como era o Aeon dos gnósticos o Om dos indianos, o Y-OM dos hebreus e o Eon dos gregos. Todos a entendiam como a divindade que se situava entre o Ser Supremo e o mundo perceptível ao pensamento e à lógica – a sensação de presença, o movimento pontual, a eternidade.

Sabemos que a onda sonora é um sinal recorrente. É um sinal que retorna periodicamente, criando um ciclo. No universo do som um sinal é sempre a marca de uma irradiação de freqüência. A onda sonora obedece a um pulso e nosso corpo e nossa mente nada mais são que um medidor destas freqüências.

Toda nossa relação com o universo – quer seja o universo físico ou mesmo o metafísico, considerado na gama gigantesca de eventos e ondas que não conseguimos observar, ou sequer registrar, que ocorrem o tempo todo no tempo/espaço e nos influenciam – passa por determinados padrões somáticos e psíquicos, que nos levam a criar uma relação interpretativa do tempo e do som de um modo particular, que por acordo, obedecendo ao entendimento de nossa própria espécie conseguimos compreender.

Músicos rituais indianos e africanos (há, no passado destas culturas, uma comunhão entre os tambores Batás e as Mrdangas, talvez uma mesma origem, onde vários padrões rítmicos são praticamente idênticos. Mudam-se apenas as fórmulas de compasso.) se utilizam de duas referências interessantes para medir a menor unidade de tempo: o batimento cardíaco ou o piscar do olho.

De fato, há uma unidade, uma medida cerebral chamada de “duração de presença”, uma unidade de tempo que conseguimos contar mentalmente e que está possivelmente, ligada ao ritmo alfa. Esta unidade é, na verdade o pulso que serve de base à interpretação psíquica do que entendemos como ritmo. Assim, a sensação de tempo não se daria de maneira contínua, mas por “acontecimentos” seqüenciados, pequenas porções de tempo que seriam interpretados por nossa mente como “um todo”, mais ou menos como os pequenos fotogramas de uma película de um filme. Este pulso mental tem a duração de 0,6 a 1,1 segundo aproximadamente.

2) Os extremos da orquestra ritual

A espacialização do som ocorre num nível abaixo da consciência. Embutido em nossa experiência de um som, há um sentido espacial que nivela, através dos reflexos dos dois ouvidos, as disparidades dos sons que são captados.

Assim, sentimos, num ritual executado de forma adequada, que um Atabaque está ali, à “esquerda”, o Agogô está ali, “atrás de mim”, etc. Durante a dança ritual, estes elementos se misturam aos símbolos que existem na mente do devoto que está se movendo segundo o ritmo programado, em obediência às acentuações dos tambores, em especial do tambor grave.

Uma das razões do transe é que de forma geral, no plano horizontal, o ser humano detecta diferenças de posição de cerca de um grau para sons de até cerca de mil ciclos por segundo e de 2 graus para as freqüências mais altas. Mas quando um som se aproxima vindo de cima, localizamos até quatro graus em freqüências baixas e com muito menos exatidão em freqüências mais altas.

Percebemos com tamanha inexatidão estas freqüências que vem de cima, que em geral ficamos perplexos, assustados, ou até mesmo em pânico, com sons que se projetam acima de nós.

Aqui está a razão da importância de instrumentos como o Agogô e seus aparentados, feitos de metal, – os mais agudos de uma orquestra ritual e principalmente, do instrumento que promove a freqüência de “embaralhamento” da consciência para o transe: os sinos e campânulas e o clássico Adjá, que é agitado acima das cabeças – um som agudo que vem de cima (!) -, provocador de difusão da atenção e da percepção. Mas esse assunto entra em fundamentos da música de transe e possivelmente trataremos dele em outra ocasião.

Nesse estudo mostraremos como os extremos da orquestra ritual se unem para definir uma linguagem de transe e culminaremos mostrando pequenos exemplos do “código” das invocações. Apresentaremos, pela primeira vez, acreditamos, exemplos dos códigos que são ouvidos apenas pelo inconsciente de quem entra em transe e daremos uma parcial compreensão de sua estrutura e funcionamento.

Para isso, precisamos entender que os “extremos” da orquestra ritual são as campânulas (agogôsgãs etc) de som agudo e o tambor Rum, de som grave. Os instrumentos de som “médio”, os tambores centrais, mais conhecidos como Rumpi e , além do Xequerê, são os que mantém a estrutura intacta, os instrumentos que permitem a compreensão cerebral do ritmo que está sendo executado. Assim, se os retiramos, e deixamos apenas os agudos e os graves, ou seja, se escutarmos apenas o Agogô e o Rum tocando, poderemos perceber uma estrutura de tempos e contratempos trabalhados principalmente pelo tambor grave, que praticamente “voa” por sobre a base aguda. Esses dois instrumentos trabalham basicamente com “tempo” e “contratempo”, conforme o exemplo a seguir:

3) Contagem e sistemas rítmicos de invocação

Repare que o som grave “induz” a atenção a segui-lo, ainda que o Agogô esteja marcando o tempo de forma “reta”, sem variantes ou oscilações. Isso porque nosso cérebro ao perceber uma base fixa, a “fotografa” e a “esquece”, dedicando sua atenção aos movimentos do tambor grave, conforme veremos adiante.

No próximo exemplo, ouviremos a execução de parte de uma peça de um ritmo conhecido no Brasil como “Batá“. Este nome é, evidentemente, herança da lembrança dos tambores sagrados de duas peles que quase foram extintos por aqui. Mas a intenção rítmica permaneceu, que é a de tocar no “vazio” do outro instrumento.

Nosso sistema nervoso quase sempre acrescenta pulsações onde normalmente não existe nenhuma. Estabelece-se uma contagem imaginária no vazio.

Imagine duas pessoas em silêncio, numa brincadeira, apenas com o pensamento tentando estabelecer alguma contagem. Dificilmente conseguirão, pois ao dizerem em que número estão, quase sempre estarão em números diferentes, pois o ritmo interno de cada uma é diferente.

Esta é uma das grandes dificuldades da contagem de notas longas em pausa, de ritmos que obedecem ciclos longos por onde, nesse espaço, entram outros instrumentos. O ritmo Batá é um exemplo clássico na música de transe dessa dificuldade, onde a marcação do Agogô demora o tempo necessário para que muito da percepção se perca e o trabalho do Rum e sua função invocatória é tocar exatamente nas pausas. Pode-se perceber, nesse exemplo, que o Agogô ainda que marque fortemente uma base sem variações, ainda assim, permite que o tambor grave se pronuncie de forma ainda mais complexa, onde ambos constroem toda uma tessitura melódica que começa a “enganar” o ouvinte, fazendo-o ter mais trabalho cerebral. Repare que aqui algo da percepção começa a se “perder”.

Propositalmente gravamos o som grave e o som agudo nos extremos dos canais para que o ouvinte perceba bem a diferença entre os ritmos. Na orquestra ritual, a colocação destes instrumentos devem ser feitas dessa maneira, distantes um do outro e em pontos separados, para que este efeito do transe comece a se processar. Escutando o exemplo abaixo, uma pequena peça de um ritmo clássico para Exu, o Agabi, podemos notar que em determinado momento o Rum varia de colcheias simples no contratempo para semicolcheias no tempo e no contra, em variações rápidas, criando uma atmosfera de “insegurança”, sugerindo algo caótico, ou que que possa “cair”. Lembramos que o dançarino segue exatamente esta sugestão de movimento, o de uma queda ou de um rodopio:

Na música ritual, o esquema das pulsações é mantido em ciclos periódicos para a dança e para a repetição necessária ao transe. A pulsação existe como uma constante da contração e do relaxamento, na tensão e na distensão, onde cada batida é a renovação da experiência sonora.

Quando o cérebro começa a sentir um encadeamento de pulsações, continua a esperar por elas, mesmo quando estas desaparecem no silêncio ou se transformam em notas longamente sustentadas. De fato, um encadeamento de pulsações precisa ser continuamente reforçado, do contrário vai cessando a expectativa do cérebro em relação a elas.

No ritmo abaixo, uma pequena sequência de um Kakaumbó, percebe-se que em alguns ciclos, o Rum , mesmo tocando livremente e nos contratempos, ainda assim ele responde ao Agogô com a mesma batida, para que o cérebro de quem entrará em transe possa ter, ainda, um “relaxamento”:

Num lapso de poucos segundos o ouvinte pode perder-se e é aí que está o espaço ideal e satisfatório para que surja o transe. No aspecto psicológico, a pulsação constitui um recomeço da percepção, um restabelecimento da atenção. Nosso sistema nervoso interrompe rapidamente qualquer fenômeno sem variações. Em alguns ritmos que são indutores mais diretos ao transe, que “forçam” o psiquismo a cair em conflito com as pulsações, não há muito espaço para que o pulso do tambor grave se “acomode” sobre a base aguda. Estes são os chamados “ritmos de guerra”. O conhecido Barravento e mesmo o Adarrum e suas variações e aparentados, como os ritmos Aderejá e Lagunló, são toques que não permitem “descanso” do psiquismo, vão diretamente ao inconsciente. Por isso são ritmos realmente perigosos se tocados no momento errado de uma gira, ou se executados de maneira incorreta na indução do transe. Violentos, quando tocados com volume muito alto e com muita velocidade, podem afetar seriamente o sistema nervoso e provocarem catarse coletiva de difícil controle. Isso se dá por que o Rum domina completamente o sistema da base do Agogô e “embaralha” a pulsação, como vemos no exemplo a seguir:

Em geral, um dos grandes indutores do transe são as complexas falas do Rum em contagens ímpares de números primos sobre bases mais sólidas, como ¾, 4/4, 2/4, 6/8 etc, pois nossa percepção do tempo e da pulsação em geral acontece quando lidamos com estes tempos compostos, já que o nosso cérebro “segue” estas pulsações, tentando se adequar a elas e entendê-las.

Nas tradições dos tambores dos povos de língua Bantu da África, é muito utilizada essa prática, onde os ritmos ímpares dos tambores graves vão buscando se encaixar em ciclos longos por cima de uma base simples, dançante. Alguns desses ritmos, muito utilizados nas nações Angola/Kongo e mesmo na Umbanda possuem uma outra intenção de código dos ritmos sudaneses (pois a estrutura linguística de vários povos da África é diferente, embora possuam uma mesma raiz) mas o sistema de contagem é muito semelhante. Um ritmo como a Cabula de Kongo (ou Congo de Ouro) possui um sistema de graves que “desloca” o tempo base do Agogô:

A pulsação de três batidas, por exemplo, é captada por inteira, por nosso cérebro, na contagem de três, naturalmente acentuando-se a primeira: UM-dois-três, Um-dois-três, etc.

O tambor grave, ao promover o transe, desmontará esse esquema, colocando notas aonde o cérebro se sentirá “desconfortável”, quer seja, acentuando o “dois” ou o “três”, ou mesmo o “um” em ciclos irregulares. É muito comum na África, no Brasil e em Cuba, a marcação do Agogô, ou dos metais, em ciclos de UM-DOIS-TRÊS-UM-DOIS. Aquele não acostumado a esse ciclo de batidas logo se confunde. Em geral, o povo do santo entende bem esses ciclos que podem ser invertidos, como UM-DOIS-UM-DOIS-TRÊS, com pequenas variações na pausa da segunda semicolcheia. Todas as tradições musicais afro-brasileiras possuem essa grade de base dos metais. É aqui onde se situa um dos mais centrais ritmos de transe como a Avamunha ou o Kongo. São bases preparatórias e classicamente seguram execuções difcílimas do tambor Rum, pois este, solitário no Novo Mundo, teve de adaptar a lembrança dos complexos ritmos dos Batás e das Ngomas africanos, que eram em número de cinco ou mais tambores, executando peças extremamente complexas em um só instrumento. A Avamunha possui cerca de 17 passagens e variações e o ritmo Kongo 21 passagens, que já apontam para os códigos ancestrais de invocação africanos:

CONTINUA…

 

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Para os que gostam de Bibliografia:

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  5. Mason, John (1992)Orin Orisa: Songs for Selected Heads.Brooklyn, NY: Yoruba Theological Archministry
  6.  Amira, John & Cornelius, Steven (Re-Issued 1999) The Music Of Santería: Traditional Rhythms Of The Batá Drums: The Oru Del Igbodu White Cliffs Media
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