O Fenômeno do Transe: Transe Anímico

Mulher em transe com a música de um dervixe sufi, no Paquistão. (Fonte: Revista Trip)
Mulher em transe com a música de um dervixe sufi, no Paquistão. (Fonte: Revista Trip)
Por Aralotum

O transe está presente em quase todas as manifestações religiosas do sec. XXI. Por via de regra, é uma ponte de contato com espíritos, potestades ou, quando não, com a divindade, propriamente dita. O transe, assim como outros aspectos da religiosidade, está intimamente ligado na maneira do ser de se comunicar com o sagrado, receber seus ensinamentos, suas bênçãos e transmitir isso a outras pessoas, a uma coletividade afim.

Há dois tipos de transe que formam a base de nossos estudos, que é o transe anímico e o transe mediúnico. O primeiro é um estado alterado da consciência, em que a pessoa entra em contado com seu inconsciente profundo, já decodificado e traduzido, e que traz ao consciente a memória ancestral da sua existência. O segundo é um estado alterado da consciência, aonde a pessoa permite que outra consciência (um espírito) se manifeste através do seu corpo físico.

Devoto em transe, durante festival religioso na Tailândia. (Fonte: Google imagens)
Devoto em transe, durante festival religioso na Tailândia. (Fonte: Google imagens)

Desta maneira, o animismo acoplado à mediunidade é positivo, pois é um modo de alto-reconhecimento durante o próprio fenômeno do transe, e só passa a ser nocivo quando se torna algo vicioso, quando não, fictício. No transe anímico, o próprio transe é a via de contato com o inconsciente profundo, com a alma e a origem da sua existência, e traz ao consciente estas lembranças e memórias ancestrais, já decodificadas e traduzidas.Mesmo no transe mediúnico, em maior ou menor grau, o animismo está presente, ou seja, todos os médiuns são anímicos, o que ainda é um grande tabu na sociedade espiritualista do sec. XXI. O animismo vem do latim anǐma, e quer dizer alma/psiquê, o princípio que anima algo ou alguém[1]. Então, o animismo é uma manifestação da alma e, se levarmos em consideração a alma como princípio da existência (pois antes de existirmos éramos inanimados), vamos de encontro ao inconsciente, que é onde estão guardadas estas informações existenciais. A partir daí, o animismo se torna a manifestação do inconsciente da pessoa no fenômeno do transe mediúnico.

Digo “decodificadas e traduzidas”, porque Freud teorizava a mente humana como um iceberg, onde a menor parte ficava sobre a água e a maior parte submersa. A menor parte é a parcela de 10% da nossa mente consciente, é a consciência, propriamente dita, onde está presente o pensamento, o racionalismo e as lembranças. A outra parte, submersa, é a parcela de 90% da nossa mente inconsciente, que se divide em pré-consciente – ou subconsciente – e inconsciente profundo[2].

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Iniciado no candomblé em transe com o Orixá Ogum. (Fonte: Google imagens)

Durante o processo do transe anímico, semelhante a um estado de hipnose, a mente acessa a parte do inconsciente profundo – que se liga ao inconsciente coletivo – e é responsável pela nossa memória ancestral. Essa memória “indica a existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo tempo e em todo lugar” [3]. Esse é o conceito de arquétipo, sobre o qual se assenta toda a ideia de representações coletivas da personalidade.No inconsciente profundo é que está guardada toda a lembrança da nossa existência, mas é uma linguagem desconhecida à nossa mente consciente, é o enigmático que vem à tona através dos sonhos e dos atos falhos. Pois, o inconsciente é como se fosse um turbilhão de lembranças, de memórias e de impulsos, que precisassem ser traduzidos para serem compreendidos, o que os psicólogos de hoje fazem através de terapias diversas.

É o que acontece comumente dentro das religiões afro-brasileiras, em que essas representações coletivas são sistematizadas através dos arquétipos das divindades. Ao “bolar no santo” esse inconsciente profundo eclode, ou seja, é acessado. Acontece a perda da consciência e essa decodificação é traduzida em forma de ritmo e dança.

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[1] “A alma (anima, psikhé) é o que anima o corpo: o que lhe permite mover-se, e de certo modo, sentir. Para o materialista, trata-se do próprio corpo, considerado em sua motricidade e em sua sensibilidade, mas não necessariamente em sua intelectualidade. Um animal pode sentir, sem ser capaz de raciocinar abstratamente – não possui ligação direta com o espírito. E em vários casos é melhor falar de espírito do que de alma, para designar aquilo que existe em nós e que tem acesso à idéia, ou ainda, ao verdadeiro. Pois é o que estabelece entre ambos, outra diferença, pois perder o espírito – ou se perder dele – não é a mesma coisa que perder a alma. Perder o espírito é perder a razão, o bom senso, que é o senso comum: é perder acesso ao universo e com isso, tornar-se prisioneiro da alma. O louco não é menos si do que qualquer um, não é menos particular, menos singular, muito pelo contrário, ele não é mais que si e é esse encerramento – apartado do verdadeiro, apartado do mundo, apartado de tudo – que o torna louco. O espírito abre a janela e é essa janela que nos leva à razão.

A alma é sempre individual, singular, encarnada (não hã alma do mundo nem de Deus). O espírito seria, antes, anônimo ou universal, até mesmo objetivo e absoluto (se o o Universio pensasse seria Deus; se Deus existisse, seria espírito). Ninguém pode sentir nada em meu lugar nem sentir exatamente como eu. Minha alma é única, tanto quanto meu corpo. Ao passo que uma idéia verdadeira, na medida em que é verdadeira, é a mesma em mim e em qualquer outro e este acesso, sempre relativo ao universal ou ao absoluto é o que aproxima-se da concepção de espírito: é a nossa maneira de habitar o verdadeiro libertando-nos de nós mesmos. A alma seria, antes, nossa maneira, sempre singular, sempre determinada, de habitar o mundo e faz nosso corpo ator do mundo em que habitamos. Assim, é o espírito que é livre e não a alma, ou antes, é o espírito que liberta e isso é, para a alma, a única salvação, sempre inacabada.” (Mestre Obashanan, 2011)

[2] FRAGER, James F. R. Teorias da Personalidade. São Paulo: Harbra, p. 7.

[3] JUNG, Carl G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, p. 53

 

3 thoughts on “O Fenômeno do Transe: Transe Anímico

  1. Gostei muito do post e da profundidade com que o tema foi abordado.
    Parabéns Aralotum pela iniciativa e pelo blog.

    Sábias palavras do Mestre Obashanan que acrescentou com brilhantismo os comentários sobre este assunto misterioso para muitos.

    Asé a todos!

    Felipe.

  2. A alma (anima, psikhé) é o que anima o corpo: o que llhe permite mover-se, e de certo modo, sentir. Para o materialista, trata-se do próprio corpo, considerado em sua motricidade e em sua sensibilidade, mas não necessariamente em sua intelectualidade. Um animal pode sentir, sem ser capaz de raciocinar abstratamente – não possui ligação direta com o espírito. E em vários casos é melhor falar de espírito do que de alma, para designar aquilo que existe em nós e que tem acesso à idéia, ou ainda, ao verdadeiro. Pois é o que estabelece entre ambos, outra diferença, pois perder o espírito – ou se perder dele – não é a mesma coisa que perder a alma. Perder o espírito é perder a razão, o bom senso, que é o senso comum: é perder acesso ao universo e com isso, tornar-se prisioneiro da alma. O louco não é menos si do que qualquer um, não é menos particular, menos singular, muito pelo contrário, ele não é mais que si e é esse encerramento – apartado do verdadeiro, apartado do mundo, apartado de tudo – que o torna louco. O espírito abre a janela e é essa janela que nos leva à razão.

    A alma é sempre individual, singular, encarnada (não hã alma do mundo nem de Deus). O espírito seria, antes, anônimo ou universal, até mesmo objetivo e absoluto (se o o Universio pensasse seria Deus; se Deus existisse, seria espírito). Ninguém pode sentir nada em meu lugar nem sentir exatamente como eu. Minha alma é única, tanto quanto meu corpo. Ao passo que uma idéia verdadeira, na medida em que é verdadeira, é a mesma em mim e em qualquer outro e este acesso, sempre relativo ao universal ou ao absoluto é o que aproxima-se da concepção de espírito: é a nossa maneira de habitar o verdadeiro libertando-nos de nós mesmos. A alma seria, antes, nossa maneira, sempre singular, sempre determinada, de habitar o mundo e faz nosso corpo ator do mundo em que habitamos. Assim, é o espírito que é livre e não a alma, ou antes, é o espírito que liberta e isso é, para a alma, a única salvação, sempre inacabada.

    Obashanan

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